A necessidade urgente de equilíbrio na transição energética

Por Francisco Neves*

O presidente Lula trazer a público sua preocupação com os preços dos combustíveis é oportuno, mas precisamos entender que algumas medidas do próprio governo federal também estão atreladas à questão. A decisão do Conselho Nacional de Pesquisa Energética (CNPE), em reunião de dezembro de 2023, impondo o aumento do teor de biodiesel no diesel para 15% e do teor de etanol anidro na gasolina para 30% inevitavelmente irá majorar os preços dos combustíveis no mercado interno e agravar os problemas de qualidade. Tanto pelo custo elevado dos biocombustíveis, como pelo aumento do custo do transporte, armazenamento, homogeneização, controle de qualidade e distribuição dos combustíveis. Prevista para entrar em vigência em março, a medida foi protelada hoje (18/2)  pelo governo federal, sob o temor de nova alta do combustível vendido nos postos. O momento é de refletir a necessidade de priorizar o interesse público e respeitar a legalidade, de forma que a maior presença dos biocombustíveis na composição do diesel e na gasolina esteja fundamentada em estudo técnico econômico atual, a ser realizado pelo Ministério da Fazenda, o qual tem atribuição e especialidade na economia popular.

Convém salientar que a matriz de transporte brasileira evoluiu ao longo do tempo a partir de uma lógica econômica e com foco na eficiência energética dos combustíveis, tendo como resultado a redução dos gases do efeito estufa. Nesse processo, houve melhorias extraordinárias na qualidade dos combustíveis fósseis, sendo o primeiro país do mundo a utilizar etanol anidro como aditivo na gasolina, ainda em 1938, no governo de Getúlio Vargas, e retirar o chumbo tetraetila desse produto. No diesel houve significativa redução do teor de enxofre, saindo de 14.000 ppm (parte por milhão), nos anos 1980, para no máximo 10 ppm de enxofre.

A entrada dos biocombustíveis na matriz de transporte de forma mais significativa ocorreu com o Pró-Álcool, na década de 1970, quando a composição da gasolina passou a ser formada com 20% de etanol anidro e surgiu o etanol hidratado comercializado de forma pura e destinado aos motores de ciclo Otto, específico para esse combustível. O sucesso do Pró-Álcool teve vida curta, pois a demanda cresceu muito e levou à escassez dos bicombustíveis, expondo os consumidores a perdas materiais substanciais. Nessa esteira, aflorou com força uma grande crise de reputação dos biocombustíveis com a descrença generalizada do consumidor quanto à garantia de suprimento e à qualidade desse produto, resultando em brutal redução de participação no mercado, por mais de 20 anos.

No início dos anos 2000, o advento tecnológico dos motores flex abriu grande espaço para o consumo do etanol hidratado combustível (EHC), de forma a superar o risco de desabastecimento. Ou seja, tendo um carro flex e não encontrando o EHC, o consumidor poderia usar gasolina “b”. Nesse período persistiram problemas de qualidade relacionados à partida a frio dos motores e o chamado “álcool molhado” (presença irregular de água no combustível), dentre outros problemas como o pH e condutividade elétrica do produto fora da especificação.

A Lei nº 11.097, de 2005, formalmente incluiu os biocombustíveis na matriz energética brasileira, atribuindo à ANP a responsabilidade de regular os produtos e a indústria de biocombustíveis. Com destaque para o uso do biodiesel a ser homogeneizado no diesel, primeiro de maneira voluntária e em seguida de forma compulsória de 2%, chegando a 14%.

No início de 2000, passou a vigorar a liberdade de preços, dentre outras mudanças significativas na organização da cadeia produtiva dos combustíveis. O objetivo foi ampliar a concorrência e buscar equilíbrio de preços a partir da ampliação da oferta de produtos e da livre concorrênciaentre os agentes econômicos. A qualidade dos produtos comercializados registrava índices elevados de não-conformidade, com significativos riscos para os consumidores em meio ao crescente nível de irregularidades, ancorados nas incertezas dos novos produtos e processos, associados às dificuldades da abertura do mercado. E existia uma visão ainda presente da autorregulação, de que o exercício da livre escolha do consumidor seria suficiente para excluir as práticas irregulares do mercado, levando órgão de controle a uma inercia generalizada.

A ampliação dos biocombustíveis na matriz veicular, incluindo o biodiesel na composição com o diesel, intensifica a complexidade do processo, os riscos e as responsabilidades do setor de distribuição, que faz o transporte, o armazenamento, a homogeneização dos biocombustíveis e a distribuição para os postos revendedores de combustíveis acabados, garantindo o suprimento em todas as regiões do país, a qualidade e ainda razoabilidade dos preços.

A matriz de transporte evoluiu, com tropeços e acertos. Chegamos a 2025 com uma participação expressiva dos biocombustíveis contribuindo para o Brasil ter uma das melhores matrizes de energia do mundo, quanto às fontes renováveis e aos impactos ambientais. Essa experiência rica deixou marcas e desafios econômicos importantes, especialmente quanto à ampliação do acesso aos produtos com qualidade para o povo brasileiro, o qual está diretamente relacionado aos preços das energias ofertadas. O consumo anual de energia per capita no Brasil, em 2024, foi de 1,32 tep (tonelada equivalente de petróleo), inferior à média mundial estimada em 1,87 e absurdamente abaixo dos EUA, onde a média em 2021 foi estimada em 6,47 tep/hab/ano.

O poder público precisa resistir às pressões dos grupos de interesses, romper a visão dogmática e inconsequente de condenação dos combustíveis fósseis, revisar o RenovaBio, que encarece os combustíveis, e buscar racionalidade econômica com base no histórico de evolução da matriz de transporte. O desafio maior é assegurar a oferta, a qualidade dos produtos e a ponderação nos preços, ampliando o acesso dos brasileiros aos combustíveis, como estabelecido na diretriz geral governamental, segundo a qual a transição energética deve ser inclusiva, justa e equilibrada.

 

* Francisco Nelson Castro Neves é diretor da Associação Nacional dos Distribuidores de Combustíveis (ANDC), engenheiro agrônomo e mestre em bioenergia, e foi superintendente da ANP

 

Fonte: IndustriaNews