Por Ricardo Viana, engenheiro de petróleo e analista de ações do setor de energia
O agronegócio brasileiro é conhecido por ser um grande criador de produtividade no país. Nas últimas décadas, o crescimento no setor levou uma quantidade muito significativa de riqueza às regiões produtoras, sobretudo ao Centro-Oeste, além de irrigar outros setores Brasil afora, como o setor logístico.
Um dos mais notórios exemplos foi o desenvolvimento da segunda safra, que chamamos carinhosamente de ‘safrinha’. Esse apelido, no entanto, está bastante ultrapassado, pois hoje a segunda safra tem dimensões bastante superlativas. O advento da safrinha se origina nas características climáticas favoráveis do Brasil. Ao administrar bem as janelas de plantio e colheita da primeira safra (em geral, de soja), é possível usufruir de sol e chuva suficientes para desenvolver uma segunda colheita. Para tal, o desenvolvimento de tecnologias de mecanização, nutrição vegetal e genética foram fundamentais.
Segundo dados do CONAB, há 25 anos, a safrinha do milho ocupava apenas por volta de 2,5 milhões de hectares. No ciclo 2024/25, ela atingiu aproximadamente 17 milhões de hectares, um salto de quase 7 vezes no período. Ganhos importantes foram observados também em produtividade agrícola. Nos primeiros 5 ciclos do século, a produtividade da safrinha foi 46,7 sacas por hectare. Nos últimos 5 ciclos, essa mesma métrica atingiu 88,8 sacas. Estes efeitos combinados fizeram a safrinha do milho crescer sua produção de menos de 10 milhões de toneladas para aproximadamente 100 milhões, fazendo do Brasil o maior exportador deste grão do mundo em 2023. Novamente, números superlativos.
O advento da super-safrinha deste século gerou uma verdadeira corrida para aproveitar a oportunidade de agregar valor a esta matéria-prima hoje abundante e barata no Brasil. O etanol de milho é uma alternativa que tem chamado atenção nos últimos anos, por conta da velocidade com que vem sendo implementada e pela grande escala e impacto no país.
Até 2016, a indústria de etanol de milho produzia em escala praticamente laboratorial, adaptando a tecnologia que foi implementada no Mid-West americano. No último ciclo, segundo dados da Única, os produtores de etanol de milho do Centro-Sul brasileiro produziram pouco mais de 8 bilhões de litros, representando quase um-terço do que foi produzido pela centenária indústria de cana-de-açúcar da região. A ascenção meteórica criou novos protagonistas no setor de combustíveis, como a Inpasa e a FS Bio. Praticamente toda semana se especula sobre um novo projeto de usina – a expectativa é que a produção de etanol de milho ultrapasse 10 bilhões de litros nos próximos anos.
Assim como a revolução da safrinha gerou efeitos de segunda ordem com impacto muito relevante (como o próprio etanol de milho), espera-se que uma revolução como esta também crie grandes mudanças na cadeia do agro.
Um setor que deve sentir impactos dessa onda do etanol de milho é o de nutrição animal. O motivo é um subproduto tão importante quanto o próprio etanol: o DDG (Distillers Dried Grains – ou grãos secos da desilaria, do inglês), que é uma espécie de bagaço do processo. Nos Estados Unidos, o DDG virou parte significativa da dieta do gado, diversificando as tradicionais misturas de farelo de soja e milho. O DDG tem uma flexibilidade maior e se posiciona bem no quesito nutricional (o equilíbrio entre carboidratos e pontos de proteína). O Brasil tem um dos maiores rebanhos bovinos do mundo, com alto potencial de intensificação da sua pecuária para otimizar o uso da terra – criando ainda mais produtividade e valor no campo.
Como em toda revolução, nem tudo são flores. O setor de etanol é relativamente maduro no Brasil, com grande parte do sua demanda sendo a chamada ‘carburante’, isto é, utilizada nos motores a combustão. A maturidade da demanda cria um desafio interessante de alocação dessa nova oferta – desafio este que deve ser endereçado com preços mais baixos aos consumidores. O etanol de milho tem duas características muito importantes no diagrama mais geral do setor: (i) é bastante competitivo em custo, ao considerar também encargos agroindustriais; (ii) é contínuo ao longo do ano, através da gestão de estoques do milho, sem distorções geradas com sazonalidade da oferta.
Como consequência disso, nos últimos ciclos, vimos um comportamento interessante da principal métrica de precificação do álcool: a paridade com seu maior concorrente, a gasolina. Tivemos paridades médias abaixo dos tradicionais 70% – número popular no cotidiano da população, sobretudo do Estado de São Paulo. Além disso, na chamada entressafra da cana (que se inicia em outubro e se encerra em março do ano seguinte), quando as paridades tradicionalmente eram mais altas por conta da parada das usinas, também tiveram um comportamento não usual – bem abaixo do usual.
“C’est une révolte?” – “Non, Sire, c’est une révolution.” Louis XVI e duque de La Rochefoucauld-Liancourt, em julho de 1789
Revoluções marcam transições de eras, como foi o caso da França revolucionária de 1789, que abriu o caminho para o fim do absolutismo europeu. Revoluções econômicas também tem essa propriedade—como a transição entre o trabalho artesanal para o industrial via máquinas a vapor da primeira revolução industrial. Ou a revolução do shale americano nos últimos 15 anos, que tirou das mãos da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) o poder de decisão dos preços de petróleo que tinha no começo do século XXI. Claro, de forma bem mais sutil do que os grandes marcos temporais citados acima, o advento da safrinha também deixou um grande legado: destronar os Estados Unidos como o grande polo formador de preço do mercado do milho transoceânico, com o surgimento do Brasil como potência exportadora. E no caso do etanol de milho, quem é o rei que periga ir para a guilhotina?
O mercado de etanol brasileiro se construiu em volta das usinas de cana-de-açúcar, que são indústrias seculares que movem a economia de pequenas e médias cidades Brasil afora, mas sobretudo no interior do Estado de São Paulo. Por conta da sua importância social—além de uma boa pegada ambiental quando comparado ao concorrente fóssil—historicamente governos providenciaram suporte a essa indústria. Esse suporte vem de diversas formas, como aumentos de mistura de etanol anidro na gasolina (que impulsiona a demanda por álcool), além de diferencial tributário (no etanol hidratado, a incidência de impostos federais é relativamente menor que na gasolina). Este status quo funcionou por décadas, por não haver competição na produção do próprio etanol, com a escala necessária. É essa a realidade que as usinas de milho devem mudar.
Em junho deste ano, notando um desequilíbrio de oferta e demanda neste setor, o Governo agiu aprovando mais um aumento de mistura do etanol anidro na gasolina, levando de 27% para 30%, a chamada mistura E30. Porém, desta vez, uma medida como esta apenas compra tempo às usinas de açúcar, sobretudo se os ambiciosos planos de expansão do milho se tornarem realidade. Em 2024, a demanda por gasolina no Brasil foi de aproximadamente 44,4 bilhões de litros (segundos dados da ANP – Agência Nacional do Petróleo) – que, na mistura de 27%, representaram aproximadamente 12 bilhões de litros de etanol anidro. Ao implementar o E30, a demanda de etanol subirá cerca de 1,3 bilhões de litros, que mal adequará o crescimento prometido pela indústria do etanol de milho para as próximas 1 ou 2 safras.
Sem o crescimento necessário, a briga entre as duas cadeias será por market share. E nessa a via cana-de-açúcar está em desvantagem, por apresentar custos de produção mais elevados que a via milho. Segundo dados divulgados pela São Martinho—produtora de açúcar e etanol considerada como benchmark de gestão agroindustrial—o custo para produzir 1 litro de etanol foi de R$ 2,84 na última safra (e R$ 2,62 no ciclo 2023-24). Os números já incluem investimentos feitos no campo. Já são dois anos que produzir etanol gera margens operacionais negativas para a companhia. No mesmo período, o etanol da FS Bio custou R$ 1,55 nesta safra (e R$ 1,90 em 2023-24), segundo dados da companhia. A queda ano contra ano é justificada por preços menores na aquisição do milho. É uma diferença muito grande. A indústria do etanol de milho deve seguir em seu impiedoso crescimento, expulsando produtores de alto custo e obrigando as usinas eficientes a encontrar formas de concentrar suas vendas no açúcar.
A Raízen, maior conglomerado açucareiro do mundo, vem sofrendo com a má performance e falta de competitividade do seu segmento agroindustrial. Em outubro do ano passado, a Companhia fez uma mudança completa em sua gestão e desde então vem anunciando iniciativas de otimização do seu portfólio e busca por eficiência.
Ao segmento do etanol de milho, no entanto, cabem dois grandes questionamentos de médio prazo, para a manutenção dos seus retornos superiores: conseguir engajar a demanda de nutrição animal pelo seu DDG e a originação de biomassa (utilizada para geração de energia no processo).