Com o corte de verbas e consequente suspensão do PMQC, que monitora a qualidade dos combustíveis, aumento iminente de fraudes preocupa entidades e especialistas, que veem a situação como a oportunidade que o crime esperava
O alerta do setor de combustíveis com as fraudes recorrentes foi reaceso com o anúncio da suspensão do Programa do Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) durante todo o mês de julho, devido a cortes orçamentários após contingenciamento de recursos do governo. A medida foi anunciada no dia 23 de junho pela Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), que informou em nota a decisão.
No comunicado a autarquia reclamou das frequentes restrições orçamentárias nos últimos anos.
“A ANP vem sofrendo restrições orçamentárias recorrentes nos últimos anos. Corrigida pelo IPCA, a autorização para despesas discricionárias caiu de R$ 749 milhões em 2013 (valor corrigido pela inflação) para 134 milhões em 2024 (-82%)”, diz a nota.
Essa restrição traz à tona os riscos de fraudes que assombram o todo o segmento e que só puderam ser reduzidas com a retomada do PMQC em janeiro deste ano, após uma suspensão que durou dois meses (novembro e dezembro de 2024). No período sem monitoramento, a ANP registrou um aumento nos casos de adulteração do teor de biodiesel no diesel em 2024, acompanhado de uma maior ocorrência dos casos autuados.
No início de junho, durante o Seminário sobre Gás Natural Liquefeito (GNL), promovido pelo Instituto de Pesos e Medidas do Estado de São Paulo (IPEM-SP), o Superintendente de Fiscalização do Abastecimento da ANP, Julio Nishida, falou sobre a melhora nos índices de conformidade que constam no Painel Dinâmico de Qualidade do PMQC.
Segundo ele, a fiscalização da ANP mais a interação com o setor, inclusive com a colaboração de várias entidades representativas, resultou em um percentual de 98,1% de conformidade na qualidade do diesel B. “A gente retornou a partir de abril, aos níveis históricos de qualidade do biodiesel.”
Assim, a nova suspensão afeta diretamente as empresas do setor em todos os elos da cadeia e também o consumidor final, que perde a transparência fornecida pelo programa. Segundo Amance Boutin, editor de combustíveis para o mercado brasileiro na Argus Media, “o enfraquecimento da ANP é a oportunidade que os fraudadores aguardam. Suspender o PMQC é dar uma avenida de liberdade para as empresas que não andam em conformidade com o mercado.”
As fraudes no mercado
Sonegação de impostos, adulteração de combustíveis, ou, no caso do biodiesel, adição no diesel abaixo do teor ordenado pela ANP (14%): todos esses são crimes recorrentes dentro do setor. Em 2021, um estudo da FGV estimou que o mercado irregular de combustíveis gerou perdas fiscais anuais de cerca de R$ 26 bilhões por ano. Desse total, R$ 15,6 bilhões correspondem a prejuízos operacionais decorrentes de fraudes como essas.

Emerson Kapaz, presidente do Instituto do Combustível Legal (ICL), conta que essa mistura não realizada de biodiesel no diesel gera um diferencial competitivo para as empresas que conseguem burlar o sistema, em detrimento das que seguem a legislação. O impacto dessas fraudes na composição do produto chegou a 46% nos testes realizados entre dezembro e janeiro.
Isso levou o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom) a protocolar com a ANP um requerimento solicitando a suspensão por 90 dias da mistura obrigatória de biodiesel no óleo diesel consumido no país. São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Goiás e Paraná foram os Estados mais afetados.
“Nós temos enfrentado esse mal com muita força. Fizemos recentemente uma reunião com várias entidades da frente parlamentar do biodiesel junto à ANP, porque eles não tinham um equipamento de fiscalização em bloco que era mais importante para se aferir a fraude no ato. Ao lado do Ministério de Relações Exteriores, doamos cinco equipamentos à Agência, um para cada região do país, permitindo que haja uma fiscalização muito mais forte e diminuição dessas fraudes no biodiesel”, diz Kapaz.
Presidente do Sindicato Nacional do Comércio Transportador Revendedor Retalhista (SindTRR), Alvaro Faria, destaca o trabalho desenvolvido pela entidade para combater a fraude. “Desde que as fraudes em relação a adição de biodiesel no diesel foram detectadas, o SindTRR iniciou um trabalho junto aos associados, orientando para o problema e recomendando que todos solicitassem a amostra testemunha. Essa é a única defesa que os TRRs têm para comprovar que o produto adquirido da distribuidora veio sem o percentual adequado de biodiesel e assim a responsabilidade e as penalidades serem aplicadas as Distribuidoras, isentando o TRR.”
O SindTRR criou um Grupo de empresários monitorando o mercado, e as informações de Distribuidoras desrespeitando a legislação foram transmitidas diretamente à ANP para a fiscalização atuar junto a origem do problema. “O SindTRR tem um histórico de trabalho em parceria com a ANP de longa data. Foi feito trabalho intenso junto à Agência para a adoção do Corante no Diesel Marítimo na região Norte, para combater fraudes, diferenciando assim o diesel rodoviário, facilitando a constatação da irregularidade pelos órgãos fiscalizadores. Esse tipo de fraude, como a do biodiesel, prejudica toda a cadeia, ao permitir uma competitividade desleal. Durante a Convenção TRR, em março deste ano, discutimos muito o tema com outras entidades e com a própria Agência”, explica Faria.
Mesmo com todos os problemas mencionados e a oposição, o trabalho mais difícil das entidades do mercado de abastecimento, segundo Kapaz, é a luta contra o crime organizado, que se infiltrou no segmento de maneira sútil e desde então fomentou a expansão do caos. “Criminosos vêm comprando usinas, inclusive de etanol, e tem crescido muito a sua atuação no setor. Para solucionar esse problema, temos lutado junto com Secretarias de Fazenda, Ministério Público e Ministério da Justiça, na busca por interromper a evolução do crime organizado”, destaca ele.
James Thorp Netto, presidente da Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis), vê com bons olhos a participação do Ministério da Justiça com o grupo de trabalho criado. “Para nós isso é muito bom, porque nos dá o sentimento de que não estamos lutando sozinhos contra o mercado irregular”, afirma.
Thorp destaca como a Fecombustíveis tem atuado em sintonia com órgãos fiscalizadores para que o monitoramento seja bem efetuado. “Quando acontece uma fraude, o posto é a primeira vítima. O monitoramento, principalmente no caso da adição do biodiesel no diesel, é crucial, já que seu teor de mistura não pode ser aferido no momento em que o posto recebe o produto”, enfatizou.
Apesar da colaboração entre Ministérios e entidades, o rombo gerado por fraudes é difícil de reparar. Segundo documento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, chamado “Follow the Products”, a comercialização ilegal de combustíveis alcança 13 bilhões de litros anuais, com perdas fiscais de R$ 23 bilhões.
“Mesmo com avanços como a monofasia tributária, o segmento carece de um sistema nacional integrado de rastreamento, a fim de dificultar o combate à ilegalidade. Práticas como adulteração, contrabando, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro são amplamente utilizadas por organizações criminosas, exigindo uma resposta integrada do Estado e do setor produtivo para enfrentar os amplos impactos econômicos, sociais e ambientais dessas atividades ilícitas”, mostra o levantamento.
Diante do cenário atual, outras entidades representativas do setor de combustíveis e biocombustíveis demonstram preocupação com o aumento potencial das fraudes no setor. Juntamente com a Fecombustíveis, Abicom, Brasilcom, IBP, ICL, Sindicom e SindTRR assinaram um manifesto pela revisão de cortes na Agência. “A notícia publicada pela ANP do corte de verbas na fiscalização, muito nos preocupa. A falta de fiscalização é praticamente uma “autorização” para os fraudadores atuarem livremente prejudicando ainda mais nosso mercado e gerando uma concorrência desleal”, ressalta Alvaro Faria.
RenovaBio e a cobrança de CBios
Não é de hoje que o mercado reclama tanto dos valores cobrados pelos CBios, quanto do fato de muitas empresas não adquirirem os títulos, conforme previsto na legislação, gerando mais uma situação de competitividade desleal.
Para Emerson Kapaz, uma grande conquista foi o resultado da ação realizada em parceria com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), que levou à aprovação de uma mudança na lei do RenovaBio, que implica na fiscalização e punição para as empresas que não recolhem CBios.
Na antiga legislação, uma artimanha usada pelos fraudadores era a possibilidade de se ter um CNPJ novo, deixando a empresa isenta por um ano de recolher. Com a atualização, todos os CNPJs que forem abertos recebem obrigatoriamente uma média de CBios a serem pagos. “Isso encerrou uma fraude que vimos muito no mercado. Agora, o CBios não recolhido passou a ser crime ambiental passível de multa, fechamento e cassação do CNPJ da empresa. As multas podem chegar até R$ 500 milhões, quando a empresa não executa o recolhimento devidamente”, explica o CEO do ICL.

No entanto, nem todas as entidades do mercado concordam com a cobrança do CBios. Para o diretor Executivo da Associação Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (ANDC), Francisco Nelson Castro Neves, o RenovaBio coloca em risco a imagem dos biocombustíveis e a política ambiental brasileira, “por ser um programa frágil, sem integridade ambiental e que não atinge sua finalidade pública, além de impor uma distorção econômica brutal” para as empresas.
Ele cita como primeiro problema a definição das metas, que tem a “pretensão de reduzir em 10% a intensidade de carbono de uma matriz que já é fortemente reduzida.” Depois de sete anos de implantação do programa, sendo cinco deles com venda de títulos (CBios), Neves afirma que o país não reduziu em nada o percentual de carbono.
Em 2019 o percentual de biocombustíveis comercializado no país atingiu 32,78%, enquanto em 2024 foi de 31,8%. “Proporcionalmente o RenovaBio não trouxe aumento do consumo de biocombustíveis. A meta de 10% não é possível de ser atingida. O RenovaBio vende uma ilusão que custa dinheiro. O Comitê deveria ter a participação de todos que são afetados pela legislação”, defende o diretor Executivo da ANDC.
Neves também questiona os critérios de comercialização. “Você tem uma oferta livre, onde o usineiro vende se quiser, e a outra parte, que é o demandante, é obrigado a comprar e com data certa. O Programa não pode ser apenas um instrumento de repasse de dinheiro do consumidor, através dos distribuidores, para grupos de empresários, produtores de biocombustíveis, particularmente do estado de São Paulo.”
O Executivo afirma que acredita em uma mudança no programa, e afirma que o enfraquecimento da ANP degrada a imagem da Agência diante da população e até mesmo de seus funcionários. “As pessoas querem se sentir úteis. O agente de fiscalização quer estar na rua. Todos que trabalham ali querem assumir um protagonismo para o desenvolvimento econômico da sociedade”, pontua.
Entidades que assinaram o Manifesto
ABICOM – Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis
BRASILCOM – Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis
FECOMBUSTÍVEIS – Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes
IBP – Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás
ICL – Instituto Combustível Legal
SINDICOM – Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes
SINDTRR – Sindicato Nacional Transportador Revendedor Retalhista
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Reportagem: Wagner Maciel e Ana Azevedo