RenovaBio causa distorções econômicas e prejudica processo de descarbonização

Lançado como uma aposta do Brasil para reduzir as emissões no setor de transportes, a Política Nacional de Biocombustíveis, conhecida como RenovaBio, vem sendo questionada por entidades como a Associação Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis (ANDC). A associação em questão denuncia a gestão do RenovaBio como causadora de desequilíbrios no setor. Como reflexo da situação, distribuidoras regionais judicializaram o programa governamental com a intenção de reavaliar as obrigações estabelecidas, como a aquisição dos Créditos de Descarbonização (CBIOs).

Os CBIOs são o principal instrumento da política instituída pela Lei 13.576/2017, com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, promovendo o uso de biocombustíveis no setor de transporte. Assim, o RenovaBio visa contribuir com o cumprimento das metas estabelecidas pelo Brasil no Acordo de Paris – tratado internacional focado na descarbonização, com metas e prazos estabelecidos para os países signatários.

Apesar de promissor no “papel”, Francisco Neves, diretor-executivo da ANDC, questiona o programa já que as decisões estratégicas não contemplam de forma equilibrada todos os agentes da cadeia. “Concordamos que a expansão dos biocombustíveis é positiva, mas com racionalidade econômica, e na prática, a dinâmica comercial dos títulos é anômala. Os produtores que ofertam os CBIOs vendem se quiserem, enquanto que os distribuidores são obrigados a comprar, com data de vencimento. Nesse cenário a especulação com os preços dos CBIOs é evidente”, diz.

Cada CBIO emitido por produtores e importadores de biocombustíveis teoricamente corresponde a uma tonelada de dióxido de carbono (CO₂) que deixa de ser emitida no processo produtivo graças à substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis, como etanol combustível anidro e hidratado, e biodiesel. Esses créditos de carbono configuram-se como um ativo “sui generi” com negociação, permitida desde dezembro de 2019, na Bolsa de Valores (B3).

A Lei estabelece que as distribuidoras de combustíveis devem comprovar anualmente o cumprimento das metas de descarbonização por meio da “aposentadoria” (não revender ou reutilizar) dos CBIOs; e o decreto 9.888/2019 fixa que o prazo para comprovar o cumprimento das metas se encerra anualmente em 31 de dezembro de cada ano.

Esses dispositivos formam o arcabouço que torna mandatória a compra dos CBIOs pelas distribuidoras. O descumprimento das regras pode resultar em multa mínima de R$ 100 mil e máxima de R$ 500 milhões, meta adiada para o ano seguinte e tipificação de crime ambiental.

“Não bastasse o conjunto de inconsistências que tornam o RenovaBio ineficiente desde seu nascedouro, a ANP tomou uma decisão surpreendente na última semana. Em suma, a Agência se nega a regulamentar o Decreto 12.437/2025, o qual  criminaliza o descumprimento das metas de CBIOs e autoriza a aplicação imediata de penalidades de extrema gravidade, abusivas, inclusive com efeitos retroativos para às novas penalidades. A deliberação arbitrária contrária manifestação anterior da própria ANP, desrespeita a Constituição Federal e arcabouço regulatório do país, em diversos aspectos e instaura uma completa insegurança jurídica no setor de combustíveis”, denuncia Francisco Neves.

O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) é quem define a meta anual global de CBIOs, fundamentado numa expectativa de redução da intensidade de carbono da matriz de transporte (IC), a partir da ampliação relativa do consumo de biocombustíveis, quando comparado com as vendas dos combustíveis fósseis.

O fundamento técnico para definição das metas globais e a corresponde promessa de redução da intensidade de carbono é na verdade uma maquiagem ambiental (greenwashing), de elevado custo para a sociedade, passível de ser atestado, pois não há ampliação relativa da participação dos biocombustíveis na matriz de transporte do histórico do RenovaBio como se verifica no quadro abaixo (fonte EPE/ANP), onde o maior percentual de participação dos biocombustíveis foi de 35,6%, e ocorreu em 2019 antes da venda de qualquer CBIOs.

Em 2024, a meta global foi de 38,78 milhões de CBIOs. Para 2025, é de 40,39 milhões com um custo estimado para a sociedade em 3,11 bilhões de reais e para os próximos dez anos a estimativa é de  46,36 bilhões de reais (SEI/MME – 0903173 – Relatório). Já a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) desdobra o total dessas metas de forma a individualizar as obrigações para aquisição dos títulos de cada distribuidora, com base em sua participação no mercado de combustíveis do exercício anterior.

Apesar dessas metas poderem ser ajustadas por fatores como compra antecipada de biocombustíveis via contratos de longo prazo com produtores certificados, desconsidera-se o serviço ambiental de homogeneização do diesel b e da gasolina c, e ainda o fato de que as distribuidoras e os consumidores não tem como alterar a parcela de biocombustíveis desses produtos, pois estas decorrem da política de mandato, a qual é da responsabilidade exclusiva do CNPE.

“A ANP publica as metas de CBIOs anuais individualizadas com base nos resultados das vendas do ano anterior, mas sem conseguir prever quais serão os preços dos títulos. A demanda é obrigatória, mas a oferta é facultativa. Até os bancos (terceiros não obrigados) podem comprar os CBIOs, guardá-los e revendê-los quando quiserem. As grandes distribuidoras têm um modelo de negócio diferente das regionais, como contrato de exclusividade com os postos, que acabam sendo obrigados a comprar combustíveis sem condições de discutir os preços, sujeitando-se a valores maiores, incluído os custos dos CBIOs e trabalham para repassar ao consumidor final. Já as distribuidoras regionais não conseguem incluir  no custo do produto o valor dos CBIOs pela falta de previsibilidade, efetiva concorrência, e dificuldades com os fluxos de caixa”, explica Francisco Neves.

Para Luiz Viana Queiroz, advogado, conselheiro federal da Ordem Brasileira dos Advogados (OAB) e presidente da Comissão de Óleo e Gás do Conselho Federal da OAB, há um desequilíbrio regulatório profundo nas regras do RenovaBio.

“As metas obrigatórias de compra de CBIOs são impostas apenas às distribuidoras de combustíveis fósseis, que não têm controle sobre as emissões da cadeia produtiva nem sobre a integridade dos créditos que estão sendo obrigadas a adquirir. Os produtores, por outro lado, participam voluntariamente e ainda são remunerados por esse mercado”, critica ele.

“Não há simetria, nem justiça regulatória nesse desenho. Isso viola o princípio do poluidor-pagador, uma vez que o compromisso assumido pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris é com a descarbonização da matriz de transportes, processo que tem origem na produção e importação de petróleo”, explica o advogado.

Queiroz também relembra que, embora a projeção inicial fosse de que o custo médio de um CBIO girasse em torno de R$ 17,00, em 2019, o preço do título ultrapassou os R$ 200,00 em determinados momentos e hoje é comercializado por cerca de R$60,00. “O programa opera sem qualquer fiscalização ou reavaliação por parte do poder público, sem critérios de correção, sem medidas de equilíbrio de mercado e sem mecanismos regulatórios de proteção mínima aos agentes obrigados e consumidos, quanto inclusive à integridade ambiental.”

Diante desse cenário, as distribuidoras regionais, por meio da ANDC, têm buscado no Judiciário a preservação de suas atividades econômicas e a revisão do programa. O Ministério de Minas e Energia (MME), por sua vez, ajuizou ação junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) solicitando a suspensão de liminares que mantêm 12 distribuidoras regionais em operação.

Segundo Francisco Neves, “o programa é administrado a mão de ferro, de forma autoritária e as distribuidoras e os consumidores afetados não são ouvidos. Os produtores de etanol estão sempre lá, mas quem paga a política não participa, sobretudo as distribuidoras regionais. Temos cerca de 150 distribuidoras regionais e três grandes distribuidoras. As pequenas e médias estão sendo muito prejudicadas com custos que não conseguem pagar e ainda sofrem assédio quando buscam a justiça.”

Ao comentar o artigo Bullying judicial no RenovaBio, publicado por Neves no Eixos,  Queiroz concorda com o uso do termo. “Em vez de reconhecer a legitimidade da via judicial como instrumento democrático de controle e correção de eventuais abusos regulatórios, algumas entidades e vozes influentes no programa passaram a difamar e desqualificar as empresas distribuidoras que exercem seu direito constitucional de ação”, lamenta o advogado.

“As distribuidoras legitimamente buscam sua sobrevivência econômica diante de obrigações financeiras inexequíveis e de um mercado de CBIOs marcado por falhas estruturais. Mais do que isso, postulam o direito de contribuir com o aperfeiçoamento do RenovaBio, que, embora seja uma boa ideia em tese, na prática tem se revelado um instrumento de mera transferência de recursos a setores econômicos emissores dos títulos de descarbonização. Em um ambiente regulatório saudável, o dissenso é legítimo, o diálogo é incentivado e o acesso ao Judiciário é respeitado”, explica Neves.

Credibilidade em cheque

Além das distorções econômicas geradas pela estrutura do RenovaBio, a gestão do programa também traz dúvidas sobre sua real integridade enquanto política pública energética e ambiental do Brasil.

Entre as críticas, está o fato de que o RenovaBio depressa a capacidade de uso do solo, as práticas de manejo e conservação, a regularidade ambiental, fundiária, e a gestão social e trabalhista na fase de elegibilidade do processo de certificação. Assim como ignora o efeito indireto do uso da terra — o chamado ILUC (do inglês Indirect Land Use Change). Na prática, quando culturas como cana-de-açúcar, milho e soja avançam sobre áreas já abertas, como pastagens, elas podem empurrar atividades como a pecuária para regiões de vegetação nativa, provocando indiretamente mais desmatamento. Esse tipo  de impacto não é considerado nas metodologias de cálculo das emissões evitadas.

Outro problema ainda relativo ao processo de certificação dos produtores agrícolas de biomassa destinada aos biocombustíveis é a emissão da nota de eficiência energética (NEEA) com depende do RenovaCalc, uma calculadora de eficiência ambiental e energética que usa dados padrão e/ou autodeclarados pelos próprios produtores e validados por auditorias privadas credenciados pela a ANP, mas escolhidos e contratados pelos interessados. A ausência de auditorias públicas e independentes rigorosas levanta dúvidas sobre a real adequação dos dados apresentados, com riscos de distorções, como a supervalorização das reduções de emissões (NEEA).

O programa também admite a certificação de propriedades estabelecidas em áreas desmatadas até novembro de 2018, desde que estejam em conformidade com o Cadastro Rural Ambiental, ignorando eventuais processos decorrentes do Código Florestal. Assim, embora haja aparente legalidade, o RenovaBio pode acabar incorporando  em sua base produtiva de biocombustíveis áreas que foram desmatadas de forma irregular no período anterior a 2018.

No que diz respeito aos impactos sociais, em dezembro de 2024, a Repórter Brasil publicou o material Escravizados do Etanol, com casos de trabalhadores resgatados em situação degradante e análoga à escravidão no ciclo da cana-de-açúcar. Segundo consta no documento, todas as usinas citadas na investigação possuem o Certificado da Produção Eficiente de Biocombustíveis do RenovaBio, numa aberta afronta ao interesse público e ao conjunto da regulação ambiental e fundiária do país.

Em resposta, o Ministério de Minas e Energia (MME), afirmou que casos de trabalho escravo “não refletem os valores e os princípios que sustentam o RenovaBio, que foi criado com objetivo de promover um setor sustentável e responsável, comprometido com a redução das emissões de gases de efeito estufa e a valorização do trabalhador rural”. Entretanto, também disse que “a ênfase da regulação do programa se dá nos quesitos energético-ambientais”, demonstrando completa indiferença da governança quanto às questões  denunciadas.

Em 2022, foi proposto o Selo RenovaBio Social, estruturado a partir de quatro temas que dialogam com os aspectos sociais da narrativa das práticas ESG (Environmental, Social and Governance): direitos dos trabalhadores, impactos na comunidade, responsabilidade com clientes, e saúde e segurança. No entanto, os  critérios atuais permanecem limitados à mera comercialização dos biocombustíveis.

Cabe à ANP a certificação dos produtores e importadores de biocombustíveis cadastrados. Entretanto, para Luís Eduardo Duque Dutra, Professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro “Capital Petróleo: A saga da indústria entre guerras, crises e ciclos”, isso não tem sido feito de forma adequada. Em sua análise, a Agência atua de forma pouco eficaz na fiscalização de atos que são declaratórios e na fiscalização do que os usineiros fazem com os valores arrecadados.

Para o professor, o RenovaBio nasceu em um momento de progressiva captura do Legislativo para a defesa de bandeiras de empresas e do agronegócio paulista. “Os problemas vêm exatamente da captura desse programa pelos usineiros e por algumas instituições financeiras com a fachada de proteção ambiental, de primeiro mercado do carbono do país.”

“Movimenta-se bilhões de reais por ano para subsidiar o financiamento de descarbonização, mas qual é a efetividade concreta disso? Não se sabe. Há um custo de 10 a 15 centavos por litro de combustível, que todos pagam, e só um pequeno grupo de produtores se beneficia. As grandes distribuidoras criticam as regionais por inadimplência, mas esse discurso é a favor da concentração de mercado. O maior interesse por trás de tudo é enxugar o mercado”, questiona o especialista.

Uma alternativa para a justiça na transição energética

Em dezembro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) por meio da criação de um mercado regulado de carbono no país e do estabelecimento de limites para a emissão dos gases de efeito estufa.

Haverá bonificação para empresas ou estados que reduzirem a emissão de gás carbônico na atmosfera, ou seja, quem comprovadamente deixar de emitir ganhará créditos de carbono, que poderão ser comprados por empresas que emitirem acima do teto estabelecido.

“Eu diria que o RenovaBio foi uma solução pouco efetiva. Agora, o legislativo brasileiro criou uma lei que estabelece o que é o mercado de carbono, e nessa lei não tem CBIO. Sem dúvida isso é fundamental pois é preciso descobrir qual o preço do Dióxido de Carbono, o que não é dado pelo CBIO”, diz Luís Eduardo Duque Dutra.

Francisco Neves, da ANDC, também concorda que a Lei 15.042/2024 é uma boa alternativa. “Ela cria novas regras em acordo com o Acordo de Paris, que é um pacto internacional. É relevante utilizar os mesmos critérios. O RenovaBio não é aderente ao Acordo de Paris. Acreditamos que a Lei é interessantíssima e beneficia a todos, e atende as expectativas das distribuidoras enquanto política de descarbonização, consideramos coerente e natural que o RenovaBio se sujeite a ela”, afirma.

 

Crédito Imagem: Unsplash

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