Pelas ruas de Los Angeles, nos Estados Unidos, carros autônomos, sem motoristas, já circulam como táxis, transportando passageiros. A Waymo, empresa do Google, expandiu seu serviço de robotáxis para a cidade, além de já operar em São Francisco e Phoenix. Na China, em Wuhan e Pequim, a Baidu, conhecida como o “Google chinês”, oferece o serviço de robotáxis Apollo Go, e planeja expandir para mais de 100 cidades até 2030.
Essas novidades sinalizam que o carro autônomo será o ápice de um futuro que já começa a ser desenhado, mas que ainda levará tempo até ser atingido plenamente.
— Com carros cada vez mais conectados, a tendência, no futuro muito próximo, é essa evolução na autonomia aumentar muito, até a etapa de não termos mais condutores nos veículos — avalia Igor Calvet, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que representa as montadoras instaladas no Brasil.
Os primeiros passos dessa mudança já estão sendo dados velozmente, com carros cada vez mais recheados de tecnologia, conectados e movidos por eletricidade, na busca pela redução das emissões de carbono.
A eletrificação, segundo especialistas, é a maior transformação dessa indústria desde sua criação, no século XIX. No mundo, estima-se que as montadoras vão investir US$ 1 trilhão até 2030 para produzir milhões de carros eletrificados, incluindo investimento em baterias e produção de lítio para confeccioná-las.
— Um motor a combustão tem entre 2 mil e 3,5 mil componentes. No elétrico, são entre 200 e 300 peças. Isso tem como consequência fábricas com menos trabalhadores, mais automação e maior facilidade de manutenção desses veículos. O desafio é produzir baterias mais baratas e reduzir o preço final desses carros — observa Jorge Antonio Martins, coordenador dos cursos automotivos da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Estima-se que, no Brasil, cerca de 80% dos veículos leves terão algum nível de eletrificação até 2040, segundo uma pesquisa da Anfavea, em conjunto com a consultoria BGC. O presidente da associação observa que ainda não se sabe qual tecnologia deve prevalecer no país, se a de veículos híbridos, híbridos plug in ou elétricos puros.
Por enquanto, os híbridos saem na frente, já que a infraestrutura de carregamento para os elétricos puros ainda é fator de receio entre os consumidores, assim como o valor de revenda do carro. O dado mais recente da Anfavea mostra que, entre os veículos vendidos no país, a parcela dos eletrificados já representa 10,6%, com híbridos e híbridos plug in liderando as preferências. Mas Calvet observa que tanto aqui quanto globalmente, o mundo ainda será multipropulsão por anos, com veículos a combustão coexistindo com os eletrificados.
Investimentos no país
Com seu mercado que permite escala (anualmente, o país vende cerca de 2,5 milhões de veículos), o Brasil está numa briga global por investimentos nessas novas tecnologias. As montadoras já instaladas no país anunciaram que, até 2030, vão desembolsar R$ 180 bilhões no desenvolvimento de projetos.
Programas do governo federal, como o Mover, que oferece incentivos fiscais para estimular a produção de veículos mais “verdes”, além da cobrança de menos imposto de quem polui menos, como o IPI Verde, têm trazido mais previsibilidade ao setor e ajudado no desenvolvimento dessas tecnologias de transição.
A indústria automotiva, que foi dominada sempre por europeus e americanos, assistiu aos chineses aproveitarem uma brecha para ganhar mercado. Com carros elétricos cheios de tecnologia, a China espalhou seus produtos pelo mundo e pisou no acelerador da transição para os chamados “carros verdes”. Duas gigantes chinesas, inclusive, a BYD e a GWM, estão investindo no Brasil, para produzir localmente.
— A Anfavea vê com bons olhos a produção local. Mas a entrada dos carros chineses no Brasil, de maneira abrupta, promoveu um desequilíbrio concorrencial. São veículos que vêm de fora, com tarifas baixas de importação, e tem subsídios por trás — diz Calvet.
As duas montadoras chinesas, BYD e GWM, prometem investir quase R$ 10 bilhões para fabricar seus carros no país. Dentro de algumas semanas, a GWM vai inaugurar a sua primeira fábrica no Brasil, no interior de São Paulo, num investimento que totaliza R$ 4 bilhões, até 2026. Serão produzidos o SUV Haval 6 e a picape Poer.
A montadora revela que se trata do primeiro ciclo de investimento no país, etapa que inclui o início da produção e avanços em pesquisa e desenvolvimento. A GWM também vai montar um centro de engenharia, cujo anúncio será feito ainda neste ano.
— No Brasil, estamos vendo uma procura muito forte para os veículos híbridos, e híbridos plug-ins principalmente. No caso dos elétricos, há demanda, mas ainda temos algumas questões de infraestrutura, que estão avançando com a chegada dos carregadores mais potentes e rápidos — conta Ricardo Bastos, diretor de Assuntos Institucionais da GWM Brasil.
A BYD já inaugurou sua unidade na Bahia, em Camaçari, onde vai produzir o SUV Song Plus, um híbrido plug in, e o elétrico Dolphin Mini. O objetivo da BYD é produzir 150 mil unidades inicialmente, e subir para 300 mil/ano. Quando estiver totalmente operacional, o projeto deve gerar até 20 mil empregos diretos e indiretos, prevê a montadora.
— O que estamos vendo hoje, na Bahia, é um marco na reindustrialização do país e um grande salto tecnológico — afirmou Alexandre Baldy, vice-presidente da BYD no Brasil e chefe Comercial e de Marketing.
Conglomerado que detém as marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, a Stellantis anunciou o maior investimento da história do setor no Brasil e na América do Sul, com desembolso de R$ 32 bilhões entre 2025 e 2030, destinados ao lançamento de 40 novos produtos. Emanuele Cappellano, presidente da Stellantis para América do Sul, explica que esse aporte contempla o desenvolvimento das tecnologias Bio-Hybrid (que combinam motores elétricos e a combustão, utilizando etanol).
—Com uma matriz energética privilegiada, o Brasil tem a oportunidade de trilhar um caminho próprio no processo de descarbonização, fazendo valer uma vantagem competitiva que é o etanol e a energia elétrica de fonte renovável — afirma Cappellano.
Desafio para vender
Para os executivos dessas montadoras, entraves como o domínio de novas tecnologias e deficiências de infraestrutura para carregamento dos carros elétricos vêm sendo superados no Brasil. Mas a indústria automotiva tem um desafio também do lado do consumidor: boa parte das novas gerações, que utilizam os aplicativos para se locomover nas grandes cidades, não quer ter a propriedade do veículo.
— Isso é uma grande tendência e ninguém sabe exatamente como ficará essa questão, que muda também a forma de vender carros — pontua Igor Calvet, da Anfavea.
COMO O GLOBO VIU
A indústria automotiva estava nas páginas do GLOBO desde sua primeira edição. A manchete histórica, naquele dia 29 de julho de 1925, estampava: “Voltam-se as vistas para a nossa borracha”. Havia a expectativa de que o empresário americano Henry Ford desembarcasse no país para anunciar investimentos numa fábrica de borracha, no Pará.
As vendas de automóveis já sinalizavam o gosto do consumidor brasileiro pelos carros. Entre 1922 e 1923, o total de carros importados subiu de 2.772 para 12.995 unidades, mostrou O GLOBO em sua primeira edição.
A cobertura do setor automotivo intensificou-se no GLOBO a partir de julho de 1933, quando o jornal ganhou sua primeira coluna sobre o assunto chamada “Automobilismo”. Os temas eram principalmente ligados ao exterior, mas também havia algumas notas de conteúdo nacional e testes com acessórios.
No segundo governo de Getulio Vargas, o então presidente restringiu a importação de veículos para estimular a indústria nacional. Essa virada foi refletida nas páginas do jornal, que aumentou o número de reportagens sobre o setor.
Em 1956, o primeiro veículo produzido localmente foi a Isetta, fabricado pela nacional Romi. O GLOBO já havia antecipado os planos da empresa meses antes do início da produção. Nessa época, o jornalista Mauro Salles criou a coluna semanal “Automóveis, Lanchas, Motos e Aviões”, que caiu no gosto dos leitores e tornou-se uma referência para o jornalismo automotivo brasileiro.
— Falar de automóveis era tabu na imprensa nacional. Na época, muitos jornais brasileiros consideravam as informações sobre automóveis, propaganda ou entretenimento — lembrou Salles, em uma entrevista publicada em 2005.
Pela primeira vez na imprensa brasileira, antes mesmo das chamadas revistas especializadas, a coluna fez testes com veículos, algo inovador na época.
Em 1962, O GLOBO fez a primeira cobertura de um Salão Internacional do Automóvel, em Paris.
Os carros continuaram na pauta do jornal pelas décadas seguintes, em colunas e suplementos como “Veículos e Transportes”, “Auto-Moto” e “CarroEtc”. Agora, com a transição para a indústria dos chamados “carros verdes”, que demandam investimentos bilionários, o assunto tem ganhado cada vez mais espaço nas páginas de Economia.