Por Sérgio Rebêlo
O setor de transportes representa um dos principais desafios para a transição energética e a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil. Com uma frota de veículos leves que ultrapassa 45 milhões de unidades, as escolhas tecnológicas, regulatórias e de mercado neste setor têm impacto significativo no cumprimento das metas climáticas do país e na qualidade ambiental das cidades brasileiras.
Este artigo analisa a evolução da sustentabilidade da frota brasileira de veículos leves nos últimos dez anos apresentando evidências concretas sobre as transformações ocorridas e projetando tendências para a próxima década. A análise abrange quatro dimensões fundamentais da sustentabilidade automotiva: a matriz de combustíveis, a eficiência energética dos motores, o uso de materiais recicláveis e a qualidade dos lubrificantes.
As evidências coletadas e analisadas apontam para uma conclusão significativa: a frota brasileira de veículos leves caminha para se tornar uma das mais sustentáveis do mundo. Esta posição de destaque no cenário global é sustentada por vantagens comparativas únicas, como a liderança do Brasil na produção e uso de biocombustíveis (segundo maior produtor mundial de etanol), uma matriz energética predominantemente renovável, a combinação inovadora de tecnologias de baixo carbono, e a predominância de veículos flex-fuel, que permitem uma transição energética mais flexível e adaptável às condições de mercado e à realidade econômica do país.
A Evolução da Matriz de Combustíveis (2014-2024)
A matriz de combustíveis para veículos leves no Brasil apresenta características únicas no cenário global, com a significativa participação do etanol, tanto na forma hidratada quanto como componente da gasolina (etanol anidro). Esta particularidade confere ao país vantagens potenciais em termos de sustentabilidade, uma vez que o etanol de cana-de-açúcar apresenta menor intensidade de carbono em comparação com os combustíveis fósseis.
Oscilações na Participação do Etanol
A análise dos dados da ANP de Entregas de Combustíveis Líquidos (i.e., vendas das refinarias e usinas para as distribuidoras) do período 2014-2024 revela um padrão errático, porém crescente na participação do etanol na matriz de combustíveis para veículos leves no Brasil:
Esta oscilação pode ser explicada por diversos fatores, incluindo a relação de preços entre etanol e gasolina, o impacto da pandemia de COVID-19 no consumo de combustíveis Ciclo Otto e na produção de biocombustíveis e disponibilidade de etanol que é um produto agrícola com produção dependente de fatores climáticos, além do fato de que usinas produtoras de etanol também produzirem açúcar e assim o balanço de produção etanol: açúcar ano a ano é normalmente ajustado em função dos preços destes produtos . Finalmente, mudanças nas políticas tributárias e ambientais também afetam o consumo de etanol automotivo
Um dos principais fatores que incentivaram o maior consumo de Etanol Anidro é a legislação que determina o percentual mínimo obrigatório do produto na composição da Gasolina C. Limites mínimos e máximos de teor de etanol na Gasolina C são definidos por lei, além de um valor base que pode ser ajustado pelo Governo Federal dentro desta faixa preestabelecida.
Em 2014, a Lei Nº 13.033 aumentou a faixa até então definida em 18% a 25% para 18% a 27,5%, de modo que, já em março de 2015, o percentual efetivo praticado subiu de 25% para 27,5% (Portaria MAPA Nº 75), teor esse que vigora atualmente.
Mais recentemente, a Lei Nº 14.993, de 8 de outubro de 2024 (“Lei do Combustível do Futuro”), subiu ainda mais a possibilidade de atuação do Poder Executivo, ao atualizar a faixa para os limites de 22% a 35%. Com essa mudança de limites, é esperado que o teor efetivamente praticado atinja 30% no futuro próximo.
De acordo com levantamento realizado pelo Sindipeças, no período de 2014 a 2024, a participação de veículos flex na frota brasileira subiu de 57% para 76%, considerando automóveis, comerciais leves, ônibus e caminhões.
Avanços na Eficiência Energética dos Motores
Um dos aspectos mais positivos da evolução da frota brasileira no período analisado foi o aumento significativo na eficiência energética dos motores.
Ganhos Mensuráveis em Eficiência
Os dados coletados indicam:
- Aumento de 30% na eficiência energética média dos veículos vendidos no Brasil entre 2014 e 2022, combinando resultados dos programas InovarAuto e Rota 2030 (Fonte: EPE – “Demanda de Energia dos Veículos Leves: 2024-2033”, dezembro de 2023);
- Evolução de 12,6% na eficiência energética automotiva apenas pelo Programa Rota 2030, em 2022, conforme relatório da EPE de 2023.
Estes ganhos são resultado de avanços tecnológicos como:
- Downsizing de motores: Redução do tamanho e do número de cilindros, compensada pelo uso de turboalimentação;
- Sistemas start-stop: Desligamento automático do motor em paradas, reduzindo o consumo em tráfego urbano;
- Injeção direta: Maior precisão na entrega de combustível, melhorando a eficiência da combustão;
- Redução de peso: Uso de materiais mais leves na construção dos veículos;
- Melhorias aerodinâmicas: Redução da resistência ao ar.
O Papel dos Programas Governamentais
Os programas governamentais tiveram papel fundamental na melhoria da eficiência energética:
- Inovar-Auto (2013-2017): Estabeleceu a meta de aumento de 12% da eficiência energética até 2022, com redução do consumo médio de combustível;
- Rota 2030 (2018-presente): Aprofundou as exigências, com metas específicas de redução de emissões e aumento da eficiência;
- Mover (2024-presente): Introduziu o conceito de IPI Verde, premiando veículos menos poluentes;
- Lei do Combustível do Futuro (2024): Estabeleceu a possibilidade de aumento do percentual de etanol na gasolina para até 35%, desde que haja viabilidade técnica.
Eletrificação Gradual
Embora ainda em estágio inicial, a eletrificação da frota brasileira começou a ganhar impulso no período analisado:
- Veículos híbridos: Aumento de menos de 0,01% em 2014 para aproximadamente 0,5% em 2024 (~ 300 mil unidades);
- Veículos elétricos: De praticamente zero em 2014 para cerca de 0,2% em 2024 (~ 90 mil unidades).
Esta tendência, ainda que modesta em comparação com alguns mercados internacionais, representa uma mudança significativa no paradigma de eficiência energética no Brasil.
Avanços no Uso de Materiais Recicláveis
A indústria automotiva brasileira tem apresentado progressos significativos no uso de materiais recicláveis, contribuindo para a economia circular e a redução do impacto ambiental dos veículos.
Evolução Histórica (2014-2024)
A análise da evolução do uso de materiais recicláveis na indústria automotiva brasileira revela um progresso gradual, mas consistente:
- 2014-2019: Este período marcou o início da adoção mais ampla da reciclagem automotiva no Brasil. Em 2014, o estado de São Paulo começou a implementar políticas de incentivo à reciclagem de veículos, seguindo o pioneirismo do Rio Grande do Sul que iniciou esta prática em 2010. Neste período, o material reciclado representava menos de 2% do total de plásticos utilizados na indústria automotiva, segundo dados da Abiplast. Em 2019, algumas montadoras começaram a implementar projetos-piloto para aumentar o uso de materiais reciclados em componentes não estruturais dos veículos;
- 2020-2022: A indústria automobilística brasileira consumiu cerca de 47 mil toneladas de resinas plásticas pós-consumo recicladas (PCR) em 2021, número que aumentou para aproximadamente 65 mil toneladas em 2022, representando um crescimento de 40% em um ano (Fonte: PICPlast/Abiplast, 2024). Atualmente, a indústria automotiva consome de 4% a 5% do total de resinas PCR, com expectativa de dobrar esse número dentro dos próximos 5 anos. No entanto, menos de 2% dos veículos do Brasil são efetivamente reciclados, enquanto em outros países esse índice chega a 90%, o que indica um grande potencial de melhoria neste aspecto.
Novas Regulamentações
Em abril de 2025, o governo brasileiro estabeleceu novos marcos para reciclabilidade na indústria automotiva através do Decreto nº 12.435, que regulamenta o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover):
- A partir de 1º de janeiro de 2027, veículos da categoria M1 (passageiros) fabricados deverão conter 80% de material reutilizável ou reciclável;
- A partir de 1º de janeiro de 2030, todos os veículos M1 produzidos deverão alcançar a meta de 85% de material reutilizável ou reciclável;
- Para os veículos leves de carga (categoria N1), as exigências são ainda mais rigorosas, chegando a 95% a partir de 2030.
Estas regulamentações devem impulsionar ainda mais o uso de materiais recicláveis e reciclados pela indústria automotiva, na próxima década.
Evolução na Qualidade dos Lubrificantes
Um aspecto de grande importância para a sustentabilidade da frota é a evolução na qualidade dos lubrificantes utilizados em veículos leves.
Transição para Lubrificantes Avançados
A indústria de lubrificantes automotivos no Brasil passou por uma evolução significativa entre 2014 e 2024:
- Houve um aumento expressivo na adoção de lubrificantes sintéticos e semissintéticos, que oferecem desempenho superior em comparação aos lubrificantes minerais tradicionais;
- De acordo com dados do Painel de Registro de Óleos e Graxas Lubrificantes da ANP, do total de óleos registrados entre 2008 e 2013, 67% eram minerais, 23% sintéticos e 10% semissintéticos. Por outro lado, no acumulado da última década, esse perfil se tornou muito mais sofisticado. Enquanto a participação dos minerais caiu para 44% (em número de produtos registrados), sintéticos e semissintéticos tornaram-se maioria, com participações subindo para 39% e 17%, respectivamente;
- Na última década, óleos sintéticos e semissintéticos triplicaram sua participação (em volume) na demanda total de óleo de motor para veículos leves, subindo de 22% para 65% em 2024.
Lubrificantes de Baixa Viscosidade
Um dos avanços mais significativos foi a criação e popularização de lubrificantes de baixa viscosidade:
- Óleos como 0W-20 e 5W-30 tornaram-se mais comuns no mercado brasileiro. Ainda de acordo com dados da produtos registrados na ANP, lubrificantes de baixas viscosidades como 0Ws e 5Ws representaram apenas 27 novos registros em 2008 (ou 4% do total registrado naquele ano), 87 novos registros em 2014 (21%) e 351 novos registros em 2024 (23%);
- De acordo com levantamento realizado pela FactorK, em 2014, do total de veículos novos vendidos, cerca de metade possuía recomendação de uso de baixas viscosidades 0Ws/5Ws pelas montadoras. Já em 2024, esse número superou 90% de novas vendas. Nesse sentido, estima-se que a penetração de baixas viscosidades 0Ws/5Ws em PCMO cresceu acima de 10% ao ano durante a última década, subindo de 15% em 2014, para 50% em 2024;
- Lubrificantes de baixa viscosidade proporcionam melhor desempenho em uma ampla faixa de temperaturas, menor volatilidade e maior resistência à oxidação e podem proporcionar uma economia de combustível de 1% a 3% em comparação com óleos convencionais.
Brasil referência global em legislação de coleta e destino de óleo lubrificante usado
Outro elemento de sustentabilidade da cadeia de lubrificantes no Brasil é a legislação de coleta e destino de óleo lubrificante usado.
A legislação brasileira sobre coleta e rerrefino de óleos lubrificantes usados ou contaminados (OLUC) é regulamentada principalmente pela Resolução CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) nº 362/2005 e pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei nº 12.305/2010.
A PNRS estabelece a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, incluindo a coleta e destinação final do OLUC, através do sistema de logística reversa
A coleta de OLUC é obrigatória e a sua destinação final deve ser feita para rerrefinadoras ou eventualmente outras destinações ambientalmente adequadas e controladas, sendo o rerrefino prioritário, considerado uma atividade de utilidade pública, que visa remover contaminantes e produtos de degradação, recuperando o OLUC e conferindo-lhe características de óleo básico.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) também regula a atividade de rerrefino, estabelecendo normas mínimas para a qualidade dos óleos básicos obtidos e fiscalizando a atividade do rerrefino.
O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e os órgãos ambientais estaduais e municipais são responsáveis pela fiscalização do cumprimento da legislação e aplicação das sanções cabíveis, e o não-cumprimento da legislação sobre coleta e destinação do OLUC pode acarretar em sanções previstas na Lei nº 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais) e em outras normas ambientais.
Ao longo da última década os percentuais mínimos de coleta de OLUC vem sendo elevados, e como resultado, a taxa de coleta de OLUC no Brasil está entre as maiores do mundo, e diferentemente de outros países, tem destino legal praticamente exclusivo para o rerrefino.
Países com taxa de coleta maior que o Brasil, usam OLUC como combustível para queima e aquecimento, o que gera emissões de GEE reduzindo o benefício ambiental.
(*) Taxa de Coleta do OLUC em 2023, como % em relação a demanda total de lubrificantes neste ano
(**) Breakdown da destinação do OLUC total coletado oficialmente em 2023
Fonte: Estimativas da FactorK com base em dados da ANP, informações de domínio público e entrevistas com players do mercado de lubrificantes e rerrefino
Reciclagem de Embalagens de Lubrificantes no Brasil (2014-2024)
A reciclagem de embalagens de lubrificantes no Brasil entre 2014 e 2024 também apresentou avanços significativos, impulsionados por um robusto arcabouço legislativo e pela atuação do Instituto Jogue Limpo como entidade gestora. O período foi marcado por importantes marcos regulatórios, como a Resolução CONAMA no 465/2014, que aprimorou as diretrizes para o recolhimento de embalagens, e as Portarias Interministeriais de 2016, 2019 e 2023, que estabeleceram metas progressivas de coleta.
A evolução do programa Jogue Limpo demonstrou resultados expressivos, partindo de uma presença limitada em 2014 para alcançar 19 estados e o Distrito Federal em 2021, quando foram destinadas corretamente 4.926 toneladas de embalagens plásticas, com impressionante índice de 97% de reciclagem. Apesar dos desafios enfrentados durante a pandemia de COVID-19 em 2020, o sistema demonstrou resiliência, retomando seu crescimento em 2021 e 2022, com expansão da cobertura geográfica, aumento na eficiência da coleta e diversificação de métodos, incluindo a implementação de Pontos de Entrega Voluntária (PEVs) e Coletas por Campanha.
A Frota de veículos leves no Brasil ficou de fato mais “verde” e sustentável na última década
O balanço das evidências indica que, apesar dos desafios persistentes, a frota brasileira de veículos leves se tornou, ao longo da última década, de fato, mais verde e sustentável.
Os avanços em eficiência energética, uso de materiais recicláveis em automóveis, qualidade dos lubrificantes, aumento das taxas de coleta de lubrificantes usados, início da eletrificação da frota, aumento do percentual de etanol na gasolina e o fortalecimento do arcabouço regulatório demonstram um progresso significativo nessa direção.
Sérgio Rebêlo é Sócio-Diretor da FactorK, consultoria, com ênfase em estratégia, programas de internacionalização e fusões e aquisições. • Administrador de Empresas pela EAESP-FGV, com MBA pela EAESP/FGV Brasil e OneMba -Kenan-Flagler Business School (Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill); EGADE (Tecnologico de Monterey/ Graduate School of Business Administration); Erasmus School of Business/ Rotterdam School of Management and The Chinese University of Hong Kong. Membro do Beta Gamma Sigma Society. • Palestrante em eventos nas áreas de óleos básicos e lubrificantes: ICIS PanAmerican; ICIS London; Lubgrax; AEA; Encontro com o Mercado – Lubes em Foco.Diretor Financeiro (Probono) do Museu de Arte Moderna de São Paulo entre 2019 e 2022.