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Decreto No. 12.153, de 26 de agosto de 2024

Foi assinado, pelo Presidente da República, no dia 26 de agosto, decreto que dispõe sobre as atividades relativas ao transporte, escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural, que, dentre as principais questões abordadas, destacam-se os seguintes: a reinjeção do gás; a harmonização das legislações Federal e Estaduais; ao impulso do biogás e biometano e a outorga de autorização.

  • Em relação a reinjeção do gás:

Em seu artigo 5º-C, inciso II, letra B, consta a previsão que a ANP poderá determinar a redução de reinjeção de gás nos poços de exploração de petróleo e gás natural associado:

“II – para garantir a oferta de gás natural e seus derivados, adotar medidas como:

……….

  1. b) determinar, mediante prévio processo administrativo com oitiva das empresas, respeitada a viabilidade técnico-econômica, a redução da reinjeção de gás natural ao mínimo necessário, inclusive com o estabelecimento do volume máximo de gás natural a ser reinjetado;” (NR.: o negrito e sublinhado não constam do original)

Essa questão da reinjeção foi objeto de intenso debate tanto pelo Poder Executivo quanto pelo Legislativo Federal, pois uns defendem a redução na reinjeção de gás em reservatórios de petróleo, objetivando aumentar assim a oferta de gás natural ao mercado, impulsionando o setor de gás natural no Brasil, enquanto outros defendem o tratamento dado atualmente nas operações de extração do petróleo e, consequentemente, reinjeção do gás associado, visando garantir melhor aproveitamento econômico dos poços, e ainda por questões ambientais.

A reinjeção de gás proporciona aumento na produção de petróleo, gerando mais receitas e reflexamente maior arrecadação de impostos aos entes federativos, contribuindo assim com o desenvolvimento socio econômico brasileiro. E, se levar em consideração o peso do segmento de petróleo e gás natural na economia brasileira, já alcançando a marca de 13% (treze por cento) do PIB nacional, qualquer aumento na produção traz reflexos positivos.

Por outro lado, é inegável que a redução do volume de gás natural reinjetado nos poços de petróleo, especialmente o oriundo do pré-sal aumentará a sua oferta no mercado brasileiro contribuindo significativamente para o desenvolvimento deste setor.

Ocorre que duas variáveis precisam ser esclarecidas em relação a reinjeção para ancorar corretamente esta questão.

  • Quanto a questão da infraestrutura de escoamento:

A infraestrutura para escoamento do gás natural extraído na área do pré-sal da Bacia de Santos é fundamental para viabilizar eventual aumento da produção de gás natural.

Apenas a título de exemplo, o gasoduto denominado Rota 3, que tem 355 km de extensão (307 km no mar e 48 km em terra) que levará o gás natural até o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí – RJ, atualmente tem uma vazão reduzida de escoamento para aproximadamente 18 milhões de m3 por dia, pois por enquanto é desviado para a Rota 2, através de interligação entre os dois gasodutos e transportado até a Unidade de Tratamento de Gás de Cabiúnas (UTGCAB), em operação na cidade de Macaé – RJ.

Quando estiver em pleno funcionamento a Rota 3 a capacidade de escoamento através da malha de gasodutos aumentará para 44 milhões de metros cúbicos de gás por dia.

Somente isso, já mais que duplicará a oferta de gás natural no mercado brasileiro!

  • Quanto ao tipo de gás reinjetado nas operações de extração de petróleo:

Os reservatórios de petróleo do pré-sal brasileiro possuem razão gás-óleo (GOR – Gas to Oil Ratio) elevada (> 250 sm3 /m3 ) e gás associado rico em CO2, ultrapassando a marca de 50% de CO2 de todo volume de gás extraído. Logo, a separação torna-se etapa indispensável, já que o gás associado possui altos teores de CO2 que necessitam ser reduzidos à 3% para que possa ser comercializado em território nacional, conforme determinação da ANP de 2008.

Adicionalmente, a remoção de CO2 do gás natural é benéfica, pois reduz o volume de gás a ser transportado, aumenta o poder calorífico do gás e evita emissões de gases na atmosfera.

A separação entre as moléculas ocorre pela diferença de propriedades físico-químicas: moléculas como as de CO2 e uma parcela das moléculas de CH4 (metano) passam pela membrana de filtração do gás natural extraído com maior facilidade e se concentram na corrente de gás a ser (re)injetado, enquanto as demais ficam na corrente de gás natural tratado, que é objeto de transporte nos gasodutos, visando ser utilizado na respectiva Unidade de Processamento.

Uma vez separada, a corrente rica em CO2 é e deve ser reinjetada nos poços, pois além de reduzir a emissão de gases efeito estufa (GEE), auxilia na manutenção de pressão dos reservatórios e no gerenciamento da produção. O processo tem o potencial de aumentar a recuperação de petróleo dos reservatórios, sendo que o principal destino para o CO2 removido do gás natural é a Recuperação Avançada de Petróleo (EOR – Enhanced Oil Recovery).

O potencial de armazenamento de CO2 na EOR é alto: mais de 50% do CO2 (re)injetado pode ser retido no reservatório. A reinjeção do CO2, inclusive, diminui a densidade e a viscosidade do óleo, melhorando sua fluidez e aumentando a produção do reservatório, monetizando assim, reflexamente, o próprio CO2.

A CO2- EOR recupera de 1-3 bbl de óleo por tonelada de CO2 (re)injetada, aumentando, assim, o tempo de vida dos reservatórios

Logo, é forçoso concluir que acerta quem defende a reinjeção nos poços de petróleo bem como quem defende o aumento da produção de gás natural, pois há efetivamente grande janela de oportunidade de haver aumento significativo em curto prazo, bastando fazer a distinção do que é efetivamente reinjetado nos poços de petróleo.

 

  • Quanto a harmonização das legislações Federal e Estaduais:

Este Decreto – que trata da exploração das atividades relacionadas à indústria do gás natural, de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização – aborda questão que não é nova no setor de gás brasileiro, ou seja, a necessidade de harmonização das legislações Federal e Estaduais que tratam de distribuição do gás natural, porém, tal asssunto não seria suposto disciplinar neste Decreto, pois trata dos demais segmentos da cadeia do setor.

Portanto, o Decreto avança na finalidade que se propõe e inova ao prever no seu artigo 3º que “se buscará harmonizar as regulações federal e estaduais”, quando na verdade somente cabe ao Estados disciplinar sobre distribuição, e assim mesmo nos termos do preceito constitucional específico sobre os serviços locais de gás canalizado, trazendo de volta novos capítulos de uma novela que parece não ter fim, pois reside na falta de regulamentação do artigo 25, §2º da Constituição Federal, que disciplina que:

“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

…………………..

  • 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.”(*Redação dada pela Emenda Constitucional nº 5, de 1995); (**o sublinhado e o negrito não constam do original)

Esse preceito constitucional reclama uma regulamentação, que até o momento não existe, já que toda a legislação que tratou do tema Gás Natural no Brasil, após 1995, ou seja, quase 30 anos, tem explicitado que não se destina a regulamentá-lo.

A ausência de regulamentação acaba gerando, por exemplo, abordagens como a do presente Decreto e questionamentos como o enfrentado em grau de recurso pela ANP mês passado, quanto ao enquadramento correto de determinados gasodutos, tal como o chamado gasoduto “Subida da Serra”, o que acaba impactando adversamente a percepção de potenciais investidores no setor, pois sendo o gás natural uma indústria de rede é mister que as atividades sejam bem definidas e separadas por infraestruturas, já que estas são tipicamente de monopólio natural, estando a concorrência nos mercados fortemente vinculada ao acesso à tais infraestruturas.

Nesse sentido, o domínio de tais ativos por empresas verticalmente integradas não traz incentivos corretos ao seu compartilhamento com terceiros, o que acaba por limitar a concorrência e consequentemente ao desenvolvimento do setor de gás brasileiro e novos investimentos.

A União Europeia já editou a Diretiva 2009/73/CE que disciplinava a separação das atividades, pois a ampliação da participação de novos agentes passa pelo acesso não discriminatório à infraestrutura, especialmente a de transporte de gás natural. Para tanto, é necessário adequar os incentivos econômicos de modo a promover a transparência, a alocação eficiente de capacidade, a redução dos custos de transação e, por fim, o acesso.

Basta analisar o desenho de mercado de gás de nossos vizinhos, como a Argentina, para perceber que a atividade de transporte do gás natural deve ser segregada das demais sob pena de se restringir o desenvolvimento do mercado.

A falta de clareza quanto as definições legislativas geram conflitos e retraem investimentos, pois é um setor que demanda bastante capital e, portanto, segurança quanto aos respectivos enquadramentos.

O legislador federal precisa, portanto, definir que a “distribuição de gás canalizado”, nos termos do artigo 25, §2º da Constituição Federal, se trata de serviço público e local de movimentação de gás natural canalizado junto aos Usuários Finais e Consumidores Livres, não abarcando, portanto, movimentação de gás para Autoprodutores e Autoimportadores, nos termos do artigo 2º da Lei nº 11.909, de 04 de março de 2009, bem como movimentação de gás natural por meio de gasoduto desde os poços produtores até instalações de processamento e tratamento ou unidades de liquefação.

O sistema de rede de gás natural precisa de regras claras!

A falta de clareza quanto a distinção dos diferentes tipos de gasodutos é que tem afastado o desenvolvimento da malha de gasodutos já que o de transporte é (i) aquele que realiza movimentação de gás natural desde instalações produção até as de tratamento ou processamento, (ii) até instalações de estocagem, (iii) os que levam até pontos de entrega aos concessionários estaduais de distribuição de gás natural e respectivas estações de compressão, de medição, de redução de pressão e pontos de entrega.

A própria celeuma acerca do gasoduto Subida da Serra não existiria se o legislador suprisse a lacuna legislativa existente, possibilitando assim serem bem definidas as características técnicas e operacionais de um duto de transporte, pois um gasoduto de alta pressão de operação e elevado diâmetro, que permite movimentar até 16 milhões de metros cúbicos por dia (MMm³/d) não se pode enquadrar em gasodutos destinados a prestação de serviço local de gás canalizado a usuários finais.

  • Quanto ao impulso ao biogás e biometano:

O Decreto nº 10.712, de 2021, no seu artigo 4º, já dispunha que conforme o disposto no § 2º do art. 3º da Lei nº 14.134, de 2021, o biometano e outros gases intercambiáveis com o gás natural terão tratamento regulatório equivalente ao gás natural, desde que atendidas as especificações estabelecidas pela ANP, porém o presente Decreto busca dar impulso ao debate legislativo nacional quanto a maior inserção do biogás e biometano na economia nacional. Inclusive, a Câmara do Deputados, no dia 06/02/2024, realizou audiência pública, da Comissão Especial para Estudos das Iniciativas para a Transição Energética, para tratar da “inserção do biogás/biometano na matriz energética brasileira”.

O biogás é produzido da decomposição, através da digestão anaeróbia, ou seja, sem oxigênio, de matéria orgânica, seja de origem vegetal ou animal, que são decompostos, produzindo uma mistura de gases, cuja maior parte é composta de metano.

O biometano, por sua vez, é resultado do processo de purificação do biogás, com a retirada do gás sulfídrico, dióxido de carbono e a própria unidade do material.

Ao contrário do que muitos pensam a produção e utilização do biogás, como fonte energética existe, em grande escala, desde a II Guerra Mundial, em função da escassez dos recursos fósseis. Já no Brasil, teve impulso com a crise do petróleo na década de 1970. Porém, atribui-se a baixa eficiência, na época, dos projetos de biogás a motivação para que muitos investimentos fossem paralisados e, em seguida, abandonados.

Nos últimos anos, em virtude do Acordo de Paris, firmado para evitar que a temperatura global aumente ainda mais, buscando frear as mudanças climáticas provocadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, o biogás passou a ter grande destaque no Brasil e no também no cenário mundial.

Um dos fatores que tem jogado bastante luz para essa importante fonte energética é a enorme diversidade de matérias-primas para produção do biocombustível, incluindo materiais de origem urbana (aterros sanitários e o lodo do esgoto), industrial (alimentos e bebidas) e de atividades agropecuárias (dejetos da pecuária de suínos, bovina e avícola). Se tem notícia que até mesmo grama pode ser usada como matéria prima para a produção de biogás, tal como já vem fazendo a Usina de Itaipu no Paraná

Portanto, além de gerar energia, diminui o próprio impacto ambiental desses setores, ou seja, a possibilidade de se obter biometano, hidrogênio, digestato, e outros bioprodutos, tem dado especial destaque ao biogás, justificando crescentes investimentos na construção de novas plantas e ampliação de plantas existentes.

O potencial de crescimento é enorme no Brasil e no restante do mundo, pois, segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o biogás representa menos de 1% da matriz energética. Apesar de representar ainda um percentual pequeno o seu crescimento tem sido espantoso, pois em 2021 o Brasil já contava com mais de 750 plantas de biogás em operação, representando aumento de 20% em relação ao ano anterior, segundo o levantamento Biogasdata de 2022.

Se levar com consideração que a Associação Brasileira de Biogás e Biometano – ABiogás, sinalizou que o Brasil possui potencial de produção anual de 84 bilhões de m3 de gás, percebe-se que existe uma longa estrada a ser percorrida pelo país, pois hoje se produz algo em torno de 2,8 bilhões de m3 por ano de biogás.

O biogás, tem uma vantagem competitiva em relação as energias solar e eólica que é a de conseguir gerar de forma ininterrupta, sendo possível estocar (i) a respectiva matéria-prima, e (ii) o gás comprimido, bem como (iii) pode atuar como estabilizador da intermitência dessas outras fontes.

É uma das poucas fontes de energia que tem como atributo o selo de “pegada negativa de carbono”, pois os gases e rejeitos que iriam para a natureza, poluindo o solo e a atmosfera, se transformam em matéria-prima para produção de energia, além de ter a vantagem de conseguir aumentar a segurança energética pois diminui as dificuldades de atendimento em áreas distantes.

Além de ser possível gerar energia elétrica, através da produção de energia térmica, o biogás pode ser usado em veículos, bem como ter seus resíduos utilizados como fertilizantes.

Porém, o mesmo problema que inviabilizou a sua utilização no século passado permanece como limitador hoje em dia, ou seja, a sua baixa escala de produção, o que demanda dos formuladores de políticas públicas um desafio legislativo, motivo pelo qual o presente Decreto ter abordado tal questão, visa justamente preencher tal lacuna.

O Decreto 11.003, de 2022, que instituiu a “Estratégia Federal de Incentivo ao Uso Sustentável de Biogás e Biometano”, já tinha como objetivo incentivar o uso dessas fontes renováveis de energia e combustível.

Segundo a EPE, o biogás tem potencial de gerar até 20% da energia elétrica da atual demanda nacional bem como se for usado o Biometano pode substituir até 35% do consumo de diesel, e apesar de sua produção ter crescido 40%, entre 2010 e 2018, ainda representa apenas 0,7% da matriz energética do país.

O Centro de Pesquisa, Inovação em Gás da Universidade de São Paulo indica que o potencial de produção de biometano em São Paulo representa 46% da demanda do Estado por gás natural[i], e tem capacidade de produzir mais de 30.000 GW/H, quase 80% da Usina de Belo Monte, ou seja, atender mais de 16 milhões de  unidades consumidoras.

O biogás pode ser injetado na malha de gasodutos, uma vez que sua composição é similar ao gás natural, bastando algumas adequações quanto a sua composição devidamente regulada pela ANP.

 

(iv) Quanto a outorga de autorização:

O Decreto altera a forma de autorização para transporte, pois a previsão legal de autorização acabou sendo “distorcido” via regulamentação, ou seja, modificou a mens legis, já que “autorização” é  o ato pelo qual um órgão administrativo permite ao seu destinatário o exercício de uma competência que já detinha ou de um direito pré-existente, enquanto que o Decreto, na Seção IV – Da autorização para as atividades de escoamento, processamento, tratamento, transporte e estocagem subterrânea de gás natural, no artigo 6º-F, disciplina que a ANP ofertará, para os investidores interessados, a outorga da autorização para as atividades das infraestruturas e instalações constantes do Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano, por meio de processo seletivo público para escolha do projeto mais vantajoso, considerados os aspectos técnicos e econômicos.

Ora, trata-se de verdadeira metonímia (figura de linguagem em que se utiliza um termo no lugar de outro) legislativa, pois outorga de “autorização”, com oferta para terceiros, por meio de “processo seletivo público”, na verdade transforma, por vias transversas, em licitação, cabível para “concessão”.

Através do Decreto se buscou criar mecanismo que modifica na pratica o que o legislador federal determinou, alterando autorização para algo mais próximo de uma licitação, previsto para outorga de concessão.

[i] https://sites.usp.br/rcgi/br/potencial-de-producao-de-biometano-em-sao-paulo-representa-46-da-demanda-do-estado-por-gas-natural/