Uma espécie de caixa cinza de 38,4 kg é colocada embaixo dos assentos de parte dos carros produzidos na fábrica da Toyota em Sorocaba, a 100 km de São Paulo. É a bateria. No caso, não a bateria tradicional – responsável por dar a partida do carro e manter em funcionamento o som e as travas elétricas, por exemplo –, mas a bateria de um motor elétrico adicional do veículo. Por meio do mecanismo de freios, esse motor gera energia, que é armazenada na bateria e usada por um sistema propulsor, que, por sua vez, auxilia (ou até substitui por poucos quilômetros) o motor a combustão.
Com ela, o automóvel vai rodar por cerca de 40 km no modo totalmente elétrico. Para o restante do trajeto, entrará em funcionamento o motor a combustão que, no caso dos modelos da marca japonesa, pode usar gasolina ou etanol. A junção das duas tecnologias torna o carro híbrido flex brasileiro mais econômico e menos poluente, a ponto de competir com um elétrico.
Na linha de montagem de Sorocaba – onde são produzidos os modelos Corolla e Corolla Cross –, o funcionário responsável por instalar a bateria extra é informado se deve acrescentá-la ou não por meio de computadores e de um papel colado na dianteira do veículo. Hoje, de cada dez carros produzidos ali, dois recebem a bateria. São, portanto, híbridos.
Com o motor elétrico extra, os veículos híbridos emitem 39% menos de gás carbônico do que um carro normal abastecido com gasolina. Se for um híbrido flex (cujo motor a combustão funciona com etanol ou gasolina), a redução chega a 78%.
A fabricante japonesa foi a primeira a produzir no Brasil, em 2019, esse tipo de veículo – uma das opções para o transporte urbano reduzir suas emissões. “A opção pelo híbrido flex ocorreu considerando a infraestrutura bastante distribuída por todo o Brasil para abastecimento de etanol. Por outro lado, a infraestrutura de recarga para carros elétricos no País é bastante deficiente”, diz Roberto Braun, porta-voz da área de ESG da Toyota no Brasil.
Assim como a Toyota, a maioria das montadoras que atuam no Brasil optou – e fez lobby – para que o País apostasse nos carros híbridos, em detrimento dos elétricos. Até pouco tempo, isso fez com que o Brasil fosse visto como atrasado na corrida pela descarbonização do setor.
Agora, porém, o País pode se mostrar tranquilo por ter defendido, desde o início, uma transição com carros híbridos abastecidos com etanol. Os recentes movimentos de pressão contra a eletrificação dos veículos na Europa e nos Estados Unidos colocam o Brasil nessa posição mais confortável no processo de descarbonização do transporte.
Países desenvolvidos que saíram na frente colocando metas para o fim da produção de veículos a combustão e partiram para altos investimentos na fabricação de elétricos, além de vultosos subsídios para a compra desses modelos, hoje estão reavaliando prazos. As vendas de elétricos estão desacelerando em vários mercados, em parte por causa do fim de incentivos governamentais e da falta de infraestrutura para recarga.
Com opções como etanol para automóveis e outros biocombustíveis para veículos comerciais, o Brasil tenta se posicionar como referência na transição energética do setor. “Problemas na Europa e nos EUA estão ajudando a solidificar a visão brasileira de que os veículos híbridos (que usam como fonte de energia a eletricidade e o combustível) têm papel relevante na transição, e que o País não precisa ir direto para os carros 100% a bateria”, diz Carlos Libera, sócio da consultoria Bain & Company.
No fim do ano passado, o governo brasileiro lançou o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que dispõe de R$ 3,5 bilhões para projetos de P&D em tecnologias limpas para o setor automotivo neste ano. Até 2028 serão R$ 19,3 bilhões. Também está em tramitação o Projeto de Lei Combustível do Futuro que, entre outras medidas, estimula o uso de etanol nos híbridos e o aumento de sua mistura na gasolina de 27% para 30%.
Na sequência do Mover, que ainda tem vários pontos a serem detalhados, ocorreram diversos anúncios de investimentos por parte da maioria das montadoras tradicionais, todos eles incluindo a produção e ampliação de linhas de carros híbridos. Os 100% elétricos, por enquanto, estão confirmados apenas pela chinesa BYD, embora seja provável que ela inicie a operação local com híbridos.
Somado a planos anteriores ainda não concluídos, os investimentos passam de R$ 120 bilhões entre 2021 e 2030, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic). Na opinião de Libera, parcela desses valores já estava prevista, mas, com os problemas enfrentados por vários países com os elétricos, a opção pelos híbridos “ficou muito mais defensável” por parte das montadoras locais com suas matrizes. Para ele, “o Brasil, de certa forma, estava quase sendo obrigado a seguir a cartilha dos elétricos por causa de pressões”.
“O setor automotivo brasileiro está ingressando no maior ciclo de investimentos de sua história, com aportes de mais de R$ 120 bilhões, boa parte voltada à produção de veículos eletrificados.” – Márcio de Lima Leite, Presidente da Anfavea (associação das montadoras)
O Mover estabelece o método chamado de “poço à roda” para contabilizar as emissões de gases de efeito estufa dos automóveis. Nele, o cálculo é feito desde a produção do combustível até o uso do veículo. No caso do etanol, o cultivo da cana absorve gás carbônico da atmosfera e, assim, compensa as emissões do carro movido pelo combustível.
Nos demais países, a metodologia é a do “tanque à roda”, que mede apenas as emissões do escapamento. Pelo método adotado no Brasil, um carro elétrico produzido na Europa ou na China, por exemplo, tem emissões maiores porque a energia utilizada vem, em parte, de usinas de carvão.
De acordo com a metodologia usada no Brasil, carros a etanol emitem 37 gramas de gás carbônico por quilômetro rodado, enquanto aqueles movidos a gasolina emitem 155 g, conforme indica estudo da Stellantis feito em 2023. Se for híbrido e usar gasolina, a emissão é de 94 g/CO2/km, mas se abastecer só com etanol vai emitir 29 g/CO2/km.
Um carro elétrico na Europa tem emissão de 54 g/CO2/km, porque a região tem grande parte da matriz energética baseada em fontes fósseis. No Brasil, em razão da energia limpa, a emissão seria de 35 g/CO2/km, cálculo que contabiliza períodos em que o País precisa acionar usinas termelétricas, que geram maior poluição.
“Não faria sentido irmos direto para a produção de veículos elétricos pois temos um combustível sustentável e disponível no País em ampla rede de distribuição”, afirma Ricardo Roa, sócio líder do segmento automotivo da consultoria KPMG. Com dimensões continentais, o Brasil precisaria também de ampla rede de recarga, infraestrutura que ainda é insuficiente até nos EUA.
Segundo Marcus Vinícius Aguiar, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), o uso do combustível derivado principalmente da cana-de-açúcar é suficiente para que o País cumpra, até 2030, sua meta de 50% de descarbonização em relação aos índices de 2015. Além disso, os híbridos não exigem uma disrupção do modelo atual de produção, o que geraria fechamento de fábricas e demissões em massa.
Mercado de nicho
Os carros 100% a bateria, opção dos principais mercados automotivos do mundo, como China, Europa e EUA, só devem entrar forte nas linhas brasileiras de produção em cerca de uma década, segundo expectativa do presidente da Volkswagen do Brasil, Ciro Possobom.
Até lá, é possível que alguns modelos com essa tecnologia sejam produzidos no País, enquanto as versões importadas vão continuar chegando. “Mas, ao longo dos próximos anos, os elétricos serão um nicho de mercado, principalmente com modelos mais premium”, afirma Roa, da KPMG.
Por aqui, até montadora da China (cujo governo determinou há cerca de dez anos que sua indústria automobilística focasse em modelos elétricos) se voltou para os híbridos. A Great Wall Motors (GWM) pretende inaugurar, no segundo semestre, sua fábrica no Brasil. Nela, produzirá, inicialmente, apenas SUVs híbridos plug-in (que podem ser recarregados na tomada e também recebem combustível normal).
A empresa está investindo, num primeiro momento, R$ 4 bilhões para adaptar às suas necessidades uma planta que era da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP). Quando estiver em plena capacidade, a fábrica deverá produzir 100 mil veículos por ano. Mas, por ora, nenhum deles será elétrico.
“Não temos planos para produzir 100% elétrico no Brasil. Acredito que vamos produzir um dia, porque nosso projeto para o País é de longo prazo. Se houver demanda, em algum momento teremos a produção. Só que hoje isso não está nos planos”, diz o diretor de relações institucionais da empresa no Brasil, Ricardo Bastos.
Segundo Bastos, a fábrica da GWM está sendo preparada para trabalhar com baterias de alta voltagem de carros híbridos. Mas elas são similares às usadas em veículos 100% elétricos, o que pode facilitar uma futura adaptação da planta.
Apesar da aposta inicial de sua empresa nos híbridos, Bastos afirma que o Brasil não pode ficar apenas nos veículos que usam biocombustíveis, dado que eles ainda emitem carbono. “Os carros que não têm escapamento são os elétricos; então a gente acha que o País terá de caminhar nessa direção.”
Incentivos e infraestrutura
Atualmente, países que optaram pelos elétricos enfrentam dificuldades com a insuficiência de pontos de recarga, preços elevados após o fim de subsídios governamentais, desvalorização dos usados e até problemas de abastecimento de energia durante o período de inverno rigoroso.
Na Alemanha, os incentivos, que chegavam a € 7 mil (quase R$ 40 mil, na cotação atual) para a compra de elétricos, foram suspensos em janeiro. Desde então, as vendas caíram 30%. O país já está revendo prazos antes estipulados para atingir suas metas de redução das emissões até 2030 e 2050.
Nos EUA, elevados estoques estão provocando uma guerra de descontos entre as fabricantes para atrair consumidores. A Tesla, maior produtora global de carros elétricos, anunciou recentemente 14 mil demissões (mais de 10% do seu quadro de pessoal) após registrar, no primeiro trimestre deste ano, sua primeira queda de vendas desde 2020.
“Ainda não temos infraestrutura suficiente para recarga”, confirmou John Bozzela, presidente da Aliança para Inovação Automotiva – que reúne fabricantes da cadeia automotiva dos EUA. O executivo também preside a Organização Internacional dos Fabricantes de Veículos (Oica).
Em visita ao Brasil no fim de 2023, Bozzela disse que outro receio do setor é a falta de matérias-primas, como lítio, para a produção de baterias, assim como as próprias baterias, cuja fabricação é concentrada na Ásia.
Optar por híbridos é estratégia menos turbulenta para países emergentes, segundo especialistas
Executivos do setor automotivo e consultores afirmam que a estratégia brasileira de hibridização não deixará o País atrasado em relação aos demais. Para eles, fazer a transição de forma disruptiva, como vem ocorrendo em algumas regiões do mundo, significaria a desativação, por exemplo, de fábricas de motores a combustão e de seus agregados (sistemas de refrigeração, de alimentação de combustível, de escapamento e de aspiração).
“Isso tudo desapareceria da cadeia automotiva; seria desligar a chave, jogar as fábricas e os ferramentais que já temos e gerar desemprego”, afirma João Irineu Medeiros, vice-presidente de Assuntos Regulatórios da Stellantis América do Sul. Para ele, um país em desenvolvimento não tem condições de arcar com as consequências de um rompimento dessa proporção.
Estudo elaborado pela LCA Consultores e pela MTempo Capital mostra os ganhos socioeconômicos que o País teria ao longo de 30 anos (de 2020 a 2050) se optar pela produção de carros elétricos e híbridos a etanol.
O trabalho, coordenado pelo economista Luciano Coutinho, ex-presidente do BNDES e sócio da MTempo, mostra que, com os híbridos, haveria aumento de R$ 2,4 trilhões no faturamento das empresas da cadeia automotiva em comparação à produção atual de carros a combustão. Se a opção fosse pelos elétricos, o resultado seria a perda de R$ 5 trilhões ao longo desse período.
Segundo Coutinho, com os híbridos a etanol (ou bioelétricos), o PIB brasileiro teria ganhos de R$ 878 bilhões e haveria geração de cerca de 1 milhão de empregos. Já com os elétricos haveria retração de R$ 1,9 trilhão no PIB e corte de 600 mil postos de trabalho.
A explicação do economista é a de que, para fabricar híbridos, são agregados novos itens aos veículos sem descartar a rede produtiva já instalada no País. Com a opção só pelos elétricos, acaba-se com a cadeia de produção de motores, utiliza-se menos peças e menos mão de obra e a maior parte das baterias será importada, pois o investimento para a fabricação é elevado e exige alta escala produtiva.
Vendas em alta
O mercado de veículos elétricos no Brasil ainda é pequeno, mas segue em trajetória de alta. No ano passado foram vendidos 19,3 mil automóveis movidos apenas a bateria (todos importados), mais que o dobro de 2022 e o equivalente a 0,9% das vendas totais do segmento. A previsão é de chegar a 24 mil neste ano, alta que já contabiliza o retorno da cobrança do Imposto sobre Importação para veículos eletrificados.
Incluindo híbridos e híbridos plug-in, foram 93,9 mil unidades de eletrificados, 90% a mais que em 2022 e o equivalente a 4,3% das vendas totais de automóveis e comerciais leves no País.
Só no primeiro trimestre deste ano, foram comercializados 14,1 mil elétricos, ante menos de 2 mil unidades em igual período de 2023. Junto com híbridos normais e plug-in, são 36 mil eletrificados, 2,5 vezes a mais em comparação aos três primeiros meses do ano passado e fatia de 7,4% do total das vendas.